PATRICIA FURLONG NA GALERIA SÃO PAULO
Agnaldo Farias
PATRÍCIA FURLONG NA GALERIA SÃO PAULO
O desenho desatado de uma escritura ao longo de uma folha provoca a perda do olho. Não há como resistir a essa ânsia pela significação que ele busca nesses minúsculos seres que tanto podem ser contorcidos e espiralados quanto ásperos e retilíneos, e que se acomodam nos sulcos que cavam na superfície de papéis ou de qualquer outra matéria que se lhes ofereça a pele. O olho pervaga fazendo o registro das variações sutis, buscando as regularidades do desenho, percebendo o modo como esse compósito apocopado vai se juntando em pequenas partes separadas por vaszios. Enamorado dos contornos ele vai deslizando no ritmo desses riachos de manchas que correm sobre pautas, tentando ao menos adivinhar sua tradução sonora, sua passagem para uma dimensão menos material, mais próxima da esfera de onde enlaçamos as coisas do mundo com os significados que lhes damos.
É em face dessa compulsão do olho que o trabalho de Patrícia Furlong reveste-se de uma certa perversidade. Ele se apóia na indústria da propaganda com seus anúncios que combinam ícones familiares e persuasivos com uma linguagem escorreita, direta e aliciadora, para destruí-los judiciosamente. A linguagem publicitária funciona a contrapelo da artística, enquanto aquela faculta a troca entre os homens esta opera na fronteira da incomunicabilidade. A primeira tenta afastar qualquer ruído que se interponha na consecução do ato que ele convida o espectador a fazer. Nela o elemento surpresa é pensado como a única possibilidade de renovação de um conteúdo sobejamente conhecido.Já a segunda comparece como a exaltação do puro ruído, do reconhecimento de que a fundação de um signo equivale à fundação do mundo. Daí que ela troca a surpresa pelo estranhamento, esse sentimento que nos arrebata sob a forma de uma solidão intensa e efêmera. Não há portanto nenhum abismo entre a produção anterior da artista, situada nos limites do expressionismo abstrato e essa opção feita em favor de uma maior armação conceitual. É como se ela apenas houvesse mudado de posição, talvez pelo reconhecimento da ingenuidade latente de um projeto estético como o expressionismo, que tem como lastro um eu interior capaz de, demiurgicamente,"criar"uma realidade. Mas, ainda mais ingênua é a atitude de retomar esse projeto contemporaneamente. Afinal, retoma-lo nos anos noventa implica em trata-lo sob o ângulo da citação, utiliza-lo como referência histórica, o que de resto significa trair a espontaneidade que ele sempre afirmou como algo que lhe é essencial.
Patrícia Furlong aparentemente eximiu-se do compromisso de "criar" novas realidades. Só aparentemente. Mais tortuosa, sua operação consiste agora em reconhecer a existência de uma realidade industrial, por si só criadora ávida de um numero espantoso de objetos e de seus respectivos signos. É justamente deste último produto, dessa matéria vasta e heterogenia, quase impalpável, que a artista se apropria como um ready made com o fito de modificar. E se assim procede é porque reconhece a dimensão sígnica desses cartazes e anúncios publicitários, assume-os na sua qualidade de típicos produtos de linguagens mescladas - palavras e ícones -, vale dizer, produtos que não se confundem com os objetos que divulgam e que só noticiam.
Os cartazes, tabuletas, out doo etc, de Patrícia Furlong são a traição de um antigo compromisso de imobilização de um mundo que nossa raiz espiritual sedentária almeja e que o status quo nos oferece. Suas letras, assim como os logotipos e as embalagens que nos são familiares, tudo vazado em cores alegres e contrastantes, são redesenhadas em direção a um outro código formado pelas suas potencialidades sígnicas. Retirados do circuito da mídia que nos envolve e entorpece os olhos, neles conserva-se um vestígio da regularidades e outros efeitos de linguagem que nos são familiares. Só que não funcionam. Foram obliterados, negados, silenciados. Mas talvez não. Talvez apontem para um outro lugar e sejam o idioma de uma outra cultura que vive e pensa com uma outra dimensão de nós mesmos.
Agnaldo Farias, 1992
Matéria para a Revista Guia das Artes, Ano 7, número 32