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PATRICIA FURLONG
Philadelpho Menezes

PATRICIA FURLONG

Em Les Mots dans la Peinture, o escritor francês Michel Butor, fazendo as vezes de um guia no museu do Louvre, analisa a presença da escrita verbal dentro das artes plásticas notadamente na sua reinserção na produção estética contemporânea, fazendo paralelos entre essa produção e o mundo pré-moderno (entenda-se aqui, até o período renascentista). Se estudarmos o desenvolvimento dos suportes técnicos, pode-se concluir que o aparecimento de uma série deles no Renascimento e seu posterior desenvolvimento (tela, livro, instrumentos musicais), serviram para gerar uma grande especialização, mas também uma setorização, das linguagens que eles comportam: a visualidade (das artes plásticas), a verbalidade (da poesia e do romance) e a sonoridade (da música). Ao lado disso, um mercado vai dando surgimento à especialização dos espaços par proliferação desses suportes e linguagens: galerias e museus para as artes plásticas, bibliotecas e livrarias para o texto, salas de concerto para a música.
Dessa maneira, processa-se também um recorte e um expurgo do cotidiano dessas manifestações estéticas, o que nos dá modernamente a concepção de arte como transgressão, isto é, aquilo que fere as normas de uso habituais e socialmente pacificadas. Com as vanguardas históricas do início do século, suportes e espaços são problematizados, dando lugar a uma refusão da arte com a vida e das linguagens artísticas entre si. A transgressão estética avança sobre a vida cotidiana, os novos suportes técnicos pedem linguagens sobrepostas numa mesma obra, os espaços físicos tradicionalmente destinados à arte perdem suas funções de diques de contenção da expressão estética. Tudo isso reunido sob o signo de um projeto utópico de renovação da sensibilidade humana. No pós-vanguardismo, transgressão e utopia passam a ser conceitos esvaídos de sentido. Mas a fusão de linguagens, a questão dos suportes e o problema dos espaços físicos continuam a nortear o senso de experimentação. É a esses pontos que o trabalho de Patrícia Furlong se refere e com os quais estabelece um diálogo sutil.
No aspecto da fusão de linguagens, costuma-se dizer que, a partir da reentrada da palavra na pintura (objeto que Butor analisa) e do grafismo na poesia (gerando a denominada poesia visual),as linguagens definitivamente perdem seus contornos e distinções. Em realidade, isso não ocorre. Tanto a poesia quanto as artes plásticas continuam a manter suas especificidades de linguagem, ainda que com limites muito mais atenuados do que antes. O trabalho de Patrícia Furlong exibe essas diferenças, em suas sutilezas mais enriquecedoras. Mesmo lidando com palavras, não é na problematização das relações entre aspectos semânticos e formais que seu trabalho se fixa (se o fizesse, adentraria na fronteira tênue da poesia visual).É predominantemente na força de sua visualidade que o signo verbal se apresenta, seduzindo sensorialmente o observador de seus trabalhos para um jogo de movimentos gráficos para o seu manuseio e transformação constante que interfere menos em sua dimensão semântica (por mais que sejam alteradas em sua ordem, as frases prontas são sempre dotadas de uma força gestaltica que as fazem legíveis) e mais na sua dimensão plástico-visual, carregada de ludismo da sensibilidade retiana e espacial típica do exercício das artes plásticas. 
A natureza do trabalho de Patrícia Furlong evidencia também o suporte como problema central da estética hoje. Num ambiente em que nova tecnologias dão o tom da imaterialidade digital para a comunicação estética, quando tudo existe para terminar em rede, um trabalho que sugere um contato físico do observador com a obra desloca esse observador de seu mundo cotidiano para a esfera do jogo infantil despretensioso (mais no sentido do desinteresse atento), que faz do contato um contágio na acepção cunhada por Tolstói (em O que é a arte? ) para discernir o que da a arte verdadeira sua natureza eficaz e duradoura (contraposta, contemporaneamente, a eficiência e ao efêmero instantâneo da cultura digital). Aqui, outra relação, em paralelo à estabelecida por Butor pode ser discutida  entre a arte hoje e a arte até o Renascimento; a refusão da arte com o artesanato, da arte oscilante entre uma concepção idealista e fisicalidade do corpo que a produz e consome (sem que essa presença do corpo signifique gestualidade livre ou desconstrução da razão), do quebra cabeça que recupera o ludismo e uma certa relação agonística entre o artista e o público por meio da obra.
Por fim, esses trabalhos se projetam no problema dos espaços físicos. Em vez de buscar intervenções nos ambientes públicos, Patrícia Furlong recorta esses ambientes e os reordena no espaço da exposição, para que pedaços deles sejam livremente manipulados pelo observador. Dessa maneira, avisos de perigo, de obras, de trânsito, são revistos fora de sua função e de seu habitat. Em vez de interferir explicitamente na paisagem urbana, seus trabalhos se projetam antes no imaginário do observador para depois, e por meio desse imaginário, interferir na contra-leitura dos elementos do cotidiano, na desautomatização do olhar do observador, depositado nas frases feitas do dia a dia.
Numa época de explicitudes (a tecnologia realizando tudo o que antes era apenas sugerido na tela ou no texto, as intervenções urbanas se exibindo física e oficialmente nos espaços), o trabalho de Patrícia Furlong retoma o implícito das sugestões, em que manuseio e leitura, olhar e pensar, jogar e sentir se reconciliam.

Philadepho Menezes - 1999

Texto para o catálogo do Panorama de 1999

2010 - presente
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