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PATRICIA FURLONG
Michel Nuridsany

PATRICIA FURLONG 


Conheci Patrícia em um avião da Varig ao regressar de São Paulo em 1985. Doze horas um ao lado do outro, tivemos muito tempo para conversar! E assim eu descobri uma artista, a meu ver uma das mais apaixonantes que se possa achar no Brasil hoje. Como eu vinha à São Paulo todo o ano, acompanhei sua evolução. No início com interesse, logo depois com prazer, pois Patrícia Furlong evoluía, melhorando constantemente, profundamente, evoluía bem. Ao contrário de muitos jovens artistas brasileiros, brilhantes, que após alguns fulgores se entregaram ao dejá vu, ao convencional, às vezes à pura e simples imitação.
Patrícia Furlong começou modestamente mas com a audácia que lhe é própria - pintando telas encantadas pelo informal, atravessadas por grandes torrentes vermelhas, líricas, longas echarpes de sangue de desejo, sinuosas, flexíveis todas em curvas arqueadas como chicotadas, contestadas por hachuras, riscos pretos, traços inquietos que ao mesmo tempo colocavam a presença incerta, flutuante da imagem e a instabilidade em uma pintura acolhedora à luz, totalmente transfigurada pelo resplendor brilhante do fundo.
Nessas premissas, Patrícia Furlong rondava em torno da figura fascinante de Ishtar, deusa semítica que encontramos na maioria dos ritos babilônicos. Astarte grega.
Sua pintura, feita de belas fugas, esbanjava profusamente sua riqueza, deixava ao gesto sua liberdade ideal, espojava-se com ousadia em uma diversidade de suportes, de materiais (encausto, serradura, asfalto, gesso, pigmento, cola, tinta industrial) de acordo com a liberalidade da proposta.
E depois, um dia em um canto do seu atelier, no meio de um emaranhado de potes de cor, de pincéis, de telas, de toda a mixórdia que acompanhava sua pintura, ela mostrou-me uma folha de jornal que desdobrou ao mesmo tempo com muito receio e certeza. Podiam ser vistas páginas totalmente tomadas por publicidade, pequenos anúncios riscados por traços paralelos ocultando certas informações. Eram as primeiras vedações. 
De chofre pareceu-me que Patrícia Furlong tivera enfim uma grande idéia plástica. Espalhei isso ao meu redor, naquela época - torno a dize-lo , pois faço questão.
Durante uma das conversas que tivemos depois, Patrícia Furlong admirou-se de poder fazer coincidir essas duas práticas - uma tão gestual, tão encravada na matéria, a outra infinitamente mais conceitual, uma tão turva, a outra tão minuciosa, meticulosa e nítida. Diferença certamente perturbadoras e realmente definidas.
Seria isso tão certo ? 
Pois além da forma, aqui entregue ao capricho do gesto, a emoção da mão, controlada pelo raciocínio que impõe suas geometrias precisas ao pincel, e devido ao mesmo processo de desenvolvimento e de recuperação que prende a artista. Pouco importa se outrora Patrícia Furlong tem olhado na distância dos mitos e que hoje se interesse mais pelo vandalismo urbano, pelos jogos dos sinais da cidade. Essa jovem brasileira não é uma grafiteira à moda americana, uma vaga epígone de Keith Haring ou de Jean Michel Basquiat. Não, Patrícia Furlong não se contenta em responder à violência das assinaturas, ela incorpora a informação, a problemática, até a emoção e emprega o que surgiu da sobrecarga da afirmação de si própria pela negação do outro, não mais como violência mas como vedação.
Patrícia Furlong, entrega-se de fato, com suas fotocópias de anúncios, de páginas de jornais, de fotografias, nessa perspectiva, a uma tarefa de desviar, de disfarçar, de deformar, talvez de desinformar, próxima daquela a que as municipalidades ciosas de tornar incompreensíveis os slogans, inscritos nos muros ou o asfalto das ruas se dedicam. E aí imagino, que seja o ponto de partida da empreitada. Porém a artista ao fazer isso inventa as formas de um novo alfabeto, de uma língua estranha que podemos aproximar à vontade do thai, do coreano ou de algumas variantes orientais do árabe. Uma sorte de etrusco fascinante e incompreensível que nos lembra algo, mas o que ?
Requichot, na França inventava também línguas desconhecidas, mas o que faz o valor do trabalho de Patrícia Furlong é o estado de indecisão no qual a obra mantém novo e ativo o enigma sempre às bordas da descoberta, sempre às bordas da recuperação. Entre dois universos incertos.
A obra de Patrícia Furlong como afirmação do enigma da obra na arte.

Michel Nuridsany, 1992

Texto para o catálogo da exposição na Galeria São Paulo.

2010 - presente
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